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Esperanto – Por que o aprendemos?

por Adonis Saliba
(2007)

Essa é uma das perguntas que tem várias possibilidades de resposta. Mas, em todas as possíveis respostas, não há como não se ligar o Esperanto com a palavra DEMOCRACIA ([1]). O Esperanto é uma proposta moderna na história da humanidade. No século XIX, quando surgiu o Esperanto em 1887, os ideais do iluminismo francês de “liberdade, igualdade e fraternidade” já haviam trazido grandes resultados no campo dos direitos da humanidade. Essas palavras se tornaram metas na formação de todos os estados modernos, inclusive na formação das Nações Unidas e da atual União Européia. Mas, mesmo assim, com tanta modernidade do homem, a democracia é ainda mais um instrumento de retórica política do que efetivamente aplicada ao processo de bem estar social ou para o bem estar dos cidadãos. Por isso, ao se ver os países com seus diversos padrões políticos. Vemos que alguns países tratam seus cidadãos com mais democracia, outros não, pois concentram mais o poder na mão de poucos. A democracia desequilibrada entre os países também não gera equilíbrio, pois alguns se julgam melhores do que outros e acabam ocorrendo intervenções “purificadoras” dos “bons” contra os “maus” e daí surgem os desrespeitos multinacionais e, como conseqüência, as guerras internacionais.
Portanto, a forma mais evidente do resultado de descumprimento da democracia é a guerra. Podemos não entender totalmente o que seja agir de forma democrática, mas pelo menos já sabemos que o Esperanto não tem nada a ver com as guerras. Onde há guerra, vemos que houve desentendimento e pouca sensibilidade humanitária e, certamente, o Esperanto ou o seu ideário de compreensão entre os povos não estava lá. Logo, o Esperanto, como língua e movimento, não é guerra. Por isso, os esperantistas o colocam como língua de paz ou melhor como língua para os momentos de paz. A suposição aqui é que o Esperanto, língua de igualdade entre povos de línguas diferentes, é um veículo de compreensão entre esses povos, portanto, uma língua de paz. Veja como essa situação evolui. Considere uma língua nacional que tenta pacificar dois países de língua diferente, mas que não pertence a nenhum país nem ao outro. Ela é uma língua mediadora. Esta língua é apenas uma terceira língua que entra na mesa de negociações, mas que não dá sensação de posse e nem de controle em nenhum dos dois países em conflito. Suponha um tratado de paz em termos atuais entre iranianos e israelenses feitos em inglês. Certamente, os iranianos pensaram que os americanos estarão favorecendo aos israelenses. Agora, pense esse tratado sendo costurado em Esperanto. Língua de todos e de ninguém ao mesmo tempo. Torna-se realmente um meio comum sem que se introduzam privilégios nacionais. Estabelece-se uma plataforma de igualdade em que um tratado de paz poderia ser muito mais eficaz, diretamente e com o mesmo potencial sendo dividido entre as partes. Nunca se pode imaginar a paz como uma atividade imóvel, estática. A paz entre nações é uma contínua disputa de interesses nacionais e exatamente esse estado fervilhante de interesses é que se produz uma estabilidade e isso Maquiavel () foi quem percebeu entre aqueles que estão no poder. Por isso, lembre-se que o Esperanto é apenas um instrumento nesse campo, apenas estaria sendo um supridor de igualdade de “armas”. Mas o Esperanto mesmo jamais poderia garantir a paz entre as nações.
Paz lembra fraternidade, que leva à igualdade entre as pessoas com a devida liberdade de atitudes de respeito. A liberdade do Esperanto não é uma liberdade do estado de natureza selvagem, mas uma liberdade que aceita a liberdade alheia. É uma liberdade de não invasão, comedida e civilizada, é uma liberdade de respeito às individualidades, sejam pessoais, culturais ou nacionais.
Portanto, é muito comum que os esperantistas digam que aprendem o Esperanto para poder respeitar à diversidade entre os homens. Para cultivar a tolerância mútua entre as diversas nacionalidades, suas culturas e peculiaridades.
Veja, portanto, que o Esperanto é muito mais do que uma simples língua. O Esperanto é um conjunto de idéias de natureza sócio-políticas decorrentes dos princípios iluministas da história moderna. O Esperanto é fruto da evolução do homem social, no que ele chama de progresso, principalmente no tocante aos processos políticos que tornaram o homem um cidadão do mundo, um ser globalizado e que tem liberdade para ir e vir, com tanta facilidade. As fronteiras nacionais deixaram de ser referência no mundo moderno. Não se fala mais em Amazônia como uma grande parte do Brasil, mas como um pulmão do mundo; não se fala mais de uma catástrofe localizada em determinado país, mas sim de um aquecimento global que afetará os seres humanos nos próximos decênios; não se fala mais de correios nacionais, mas de uma Internet plenipotenciária da contato globalizado. Tudo isso independente de países e de fronteiras concebidas pelo homem para o planeta Terra. O homem atual evoluiu muito, vive muito mais e melhor em sociedade. Mas, como é próprio da natureza humana, ele não está contente com o seu estado atual, procura mais. Há ainda uma necessidade de um contato humano globalizado com base em um sentimento de igualdade de poderes. Veja que o homem, em nenhum momento, pretende perder os seus poderes. Ele os quer mais e mais. É criativo o suficiente para criar meios para isso. Nos tempos modernos, em plena vigência da “liberdade e igualdade”, Karl Marx muito bem denunciou n’O Capital, o poder da máquina capitalista como um instrumento centralizador e auto-gerador de desigualdades em classes sociais. Após essas denúncias marxistas, o mundo se tornou um pouco mais civilizado e atento aos excessos capitalistas, mas não menos centralizado nos favorecimentos e desfavorecimentos entre classes. O socialismo democrático hoje é ainda pouco praticado de uma forma global e o comunismo descambou para um principio despótico ao longo do século XX que o fez derrocar. Bem, devemos entender esses regimes políticos como experimentações do homem moderno para estabelecer sua organização social e política. Atualmente, temos a sensação de que o capitalismo veio para ficar, enquanto mais e mais países estão se convertendo a esse princípio de estilo político-econômico de governar. Os Estados estão se homogeneizando em sua matriz governamental fundamentando-se em uma economia capitalista, mas buscando socializar melhor as condições nefastas que o capitalismo gera.

E o Esperanto, a Internet e o capitalismo crescente?


Não vejo o capitalismo crescente. Mas esse assunto é mais complicado para se fazer futurologia agora. Vamos ao que conhecemos como realidade, isto é, um capitalismo se generalizado como forma de sobrevivência da raça humana. E ainda nessa fase, a humanidade ainda não reconheceu o Esperanto, ou algo similar a ele que venha a surgir, como um veículo de contato internacional generalizado. O reducionismo de análise leva muitos esperantistas a dizerem, de forma inconseqüente, que os “EUA não permitem a evolução do Esperanto”. Isso é um erro, pois assumem os EUA como um símbolo maior do capitalismo no mundo atual e o tomam pelo vilão nessa história. O problema é maior do que o capitalismo em si, que necessitou ter o inglês, como um veículo formal de uma língua franca mundial e de acumulação científica. Mas não nos esqueçamos do fato que o inglês é língua nativa de apenas 6% da humanidade. Além disso, o inglês é uma língua foneticamente difícil e de gramática irregular – apesar  de relativamente simples entre os demais idiomas nacionais. Do ponto de vista, estrutural e geográfico, o espanhol, entre as línguas naturais, teria sido uma melhor escolha. O que sabemos é que a escolha do inglês foi por motivos econômicos e de poder e esse é o fato e ainda representa um poder centralizado. E isso faz muita diferença no mundo que se configura nos próximos decênios ou séculos. A filosofia marxista mostra que o capitalismo gera uma situação de poder maior para alguns e de submissão global para muitos. Mas em situações da Internet, essa configuração muda. No mundo virtual, a situação de poder está se alterando substancialmente. Ainda estamos na fase inicial da Internet. E quem está no poder físico das nações ainda se mantém em situação privilegiada de poder na Internet, seja de forma cultural ou seja através do volume de informações que são capazes de gerar. A Internet  ainda é um braço dessa situação de poder, mas a Internet já prenuncia uma solução parecida com aquela proposta pelo Esperanto.
A Internet, assim como, o Esperanto são instrumentos descentralizadores do poder. Com a  Internet surgiu o germe de uma nova fase, que é crescente e se tornará aparentemente mais e mais forte no futuro. Surgiu a descentralização e pulverização do poder capitalista no mundo. Surgiu o mercado mundial. A Internet é uma janela de comunicação individual, é de ninguém e é de todos ao mesmo tempo. Tem os símbolos da igualdade de massa, da liberdade de expressão e se mostra bem similar a um estado de natureza de liberdade plena, pregado pelos grandes filósofos do século XVII e XVIII. Cada internauta deve ser visto como uma célula no universo da comunicação. Socialmente, ele está se informando e procurando a sua tribo virtual. O real se torna virtual e o virtual se torna a realidade do participante. Caíram-se as barreiras; os limites e a sensação de liberdade são totais. Tudo agora é possível, criam-se a própria cultura e os próprios padrões antropológicos de uma sociedade virtual, sem uma passado e sem um futuro. É o mundo das informações e das perdas de informação, onde tudo se torna presente, real e ao mesmo tempo irreal. Tudo é prazer e nada é feito sob a coerção de Estado formal. Todos os países mandam e ao mesmo tempo é um mundo sem lei. E nesse estado de coisas, se formará a sociedade do futuro. Aliás, esse estado já está em plena formação e já convivemos com ele a partir de nossas bases de lançamento, de nossos teclados, mouses e monitores. Ao se desligar esse mundo, tudo volta ao mundo do real.
No entanto, já se percebe que na Internet ainda falta a evolução no campo da comunicação franca internacional. A adoção do inglês, apesar de generalizada, não deverá se configurar realmente como a língua de um grande Leviatã hobbesiano. A fundamentação da Internet é a destruição desse grande Leviatã, a tendência é se caminhar para uma poliarquia de Dahl, um mundo em que a democracia é de todos realmente, todos tem voz, todos tem direitos. Uma língua nacional não poderia ser um instrumento de comunicação nesse estado, há necessidade de um idioma neutro, transnacional. Suponhamos o oposto, que o inglês seja aceito. Mas que inglês seria aceito? Seria o inglês americano? Ai teria uma guerra de nacionalidades entre os próprios falantes de língua inglesa. E, até mesmo, os falantes internos dos EUA. Seria o inglês com sotaque da Califórnia, do Texas ou de Nova York? Talvez melhor seria o inglês da BBC que abrangeria um maior volume doe mundo anglófono. Mas será que os franceses, os alemães prefeririam o falar londrino ou novaiorquino. Bela história de nacionalismos. Dá para perceber que não há neutralidade no inglês?
Quando a Internet ocorrer realmente, há necessidade de um idioma neutro e que igualaria todos, um idioma não representante de um poder centralizado. Centralização não tem nada a ver com o futuro da sociedade virtual, dessa tribo virtual que está em formação. Quando a Internet ocorrer ela não poderá ser fruto da regência de poucos e nem mais representará o capitalismo de oportunidade, pois a produnda descentralização gerará um mundo de muitas, infinitas oportunidades e valores, e isso permitirá retornar a um estado em que as coisas adquirem importância pelo uso e não pela alienação do poder de troca. Em parte, essa seria a sociedade perfeita e equilibrada.


[1] Democracia é uma palavra que vem do grego (demos = povo e cratos = poder, regra). Literalmente, o poder de povo. Democracia é um regime de governo no qual o poder de tomar importantes decisões políticas está com os cidadãos, direta ou indiretamente, por meio de representantes eleitos. Uma fase famosa é a seguinte: governo do povo, pelo povo e para o povo.  No entanto, não devemos esquecer que a democracia deve ser vista com a devida parcimônia, pois pode também pode ser veículo de um poder desmedido e acéfalo, como no julgamento de Jesus, cuja morte, após Pôncio Pilatos lavar as mãos, foi democraticamente condenado pelo povo e, também, a eleição de Hitler foi feita de forma plenamente democrática. Por outro lado, apesar das exceções, a democracia é a melhor forma de poder e que tem se provado mais justa ao longo da história. Em geral, quando se fala democracia hoje em dia, além de seu sentido político, podemos entendê-la como uma forma de agir e de se comportar que se baseia na opinião da maioria, mas não desrespeitando e nem prejudicando a minoria. Por isso mesmo, para se ter uma compreensão plena da “boa” prática democrática, devem-se sempre respeitar as minorias e as suas diversidades, com a devida prática da tolerância aceitando-se as diferenças. Aliás, esse é o sentido que o Esperanto deve ser visto em sua estrutura democrática, uma língua internacional que respeita e tolera as diferentes línguas e culturas de uma forma geral. O Esperanto deve sempre ser visto como a segunda língua de todos. Primeiro, vêm o respeito pleno às línguas nacionais e depois vêm o Esperanto que serve de ponte a todas essas culturas que formam uma comunidade multilingüística.

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